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16 julho 2006

Clarice Lispector

REVENDO OU REVELANDO CLARICE
São Luís, 18 de dezembro de 1977
Suplemento Sete Dias
Quem mergulhou na ÁGUA VIVA de Clarice Lispector pode perceber Clarice-gente, Clarice-água, Clarice-alegria, Clarice-solidão, Clarice-mistério, Clarice-vida, Clarice-morte, Clarice clara-oculta. ÁGUA VIVA veio parar em minhas mãos por acaso e eu por querer me permiti mergulhar nessa água, e como ela diz “me fiz até o caroço” ou tentei. A partir daí sua obra tem sido minha companheira. Tornei-me irmã dessa sensibilidade magnífica e inefável. Sua obra é minha “paixão” e eu tenho encontrado nela muitas respostas para o que tanto muitas vezes me confundia e me confunde (porque a confusão não passa). Esse “livrinho” sem grandes pretensões e sem grandes citações dos críticos literários seja talvez o que mais revele Clarice, porque é a fala dela, é ela dizendo. ÁGUA VIVA me impressiona, sobretudo pela beleza e pelo que é possível e preciso pescar ali. José Chagas me disse: “esse livro não é um livro para se ler é um livro para se estar lendo” e não se contendo escreveu o poema “Água de Clarice” (1974) ainda inédito. Que jeito dar para Clarice ler o poema? Outra vez o acaso. Um amigo escreve do Rio de Janeiro contando que tinha jantado em companhia de Clarice. E com a carta, Laços de Família autografado __ "a Aurora minha irmãzinha." Era a explosão da minha fantasia, meu ego satisfeito. Em julho, 1977 __ a glória provinciana de conhecer o mito. Encontro marcado pelo telefone. A voz inconfundível de Clarice. Em mim aquela emoção prévia pelo desconhecido. Do Lido ao Leme pensamento dando voltas. O que dizer, o que perguntar a Clarice? (ela que nunca pretendeu dar respostas, ela que sempre só indagou). Ao entrar fui saudada por Ulisses (eu, tão avessa a cachorros). Clarice povoada de azul marinho se me mostrando na claridade escondida daquela manhã de domingo. O temor ao mito se desfez quando ela me mandou sentar onde eu quisesse. E como ela se ocupasse de sua máquina de escrever (portátil) que não queria “andar”, eu pedi para “consertar” e, milagre! Consegui. (eu, experimentada que sou no ofício das teclas, fitas e carretéis). Tarefa cumprida, Clarice estava apta a datilografar a entrevista que tinha feito com Gilda Grilo para a Revista Fatos e Fotos/Gente.Ali, entre plantas, cinzeiros, livros, almofadas e papéis espalhados pelo sofá, Clarice trabalha, fala ao telefone (vermelho) e me vê, me indaga e me diz. De seus retratos, tantos, cobrindo paredes, ela fala com detalhes dos pintores seus amigos. Ali o momento de Clarice, de “Água de Clarice” (que ainda não tinha lhe chegado posto que Sérgio Matta viajara para os Estados Unidos e se esquecera de entregá-lo). Clarice quis saber se havia outra cópia, curiosa que estava.Ali Clarice diante de mim ou eu diante dela me revelando no que nem ouso. Seus personagens foram lembrados e comentados. Macabéa eu conheci ali. De seus livros, A Paixão Segundo GH e A Maçã no Escuro foram os mais discutidos (até onde Clarice permitia discutir sua obra).Ali um momento de Clarice, voltando à sua vida no Exterior, no Nordeste e a possibilidade de vir a esta cidade. Tinha ficado maravilhada com um curta-metragem que vira sobre São Luís. Seus olhos brilhavam mais quando falava do champanhe francês que guardava para brindar o nascimento do primeiro neto. Cafezinho, conselhos e indagações. Amor e sexo, discussão maior. Clarice desvendada (?), clara (?), acessível e tantas vezes contundente. Seus olhos castanhos, de tão luminosos até intimidavam. Clarice viva dizendo meu nome com dificuldade. Logo chegaria alguém que a levaria. Espontâneo o convite para almoçar com Sonia (se pós-graduando em literatura na PUC) e Sheila (que esperava embaixo) moça, bonita, mãe, solteira e psicanalisada.Entre batidas de côco e camarão grelhado, a conversa vazava a vida e a decorrência dela. A simplicidade, a permanência, a existência de Clarice era tocável. Clarice entre nós querendo saber de nós.Doce de côco como sobremesa era seu desejo. Com tanto no Maranhão e Clarice tendo que usar o seu faz-de-conta para conseguí-lo no restaurante da esquina. Doce de côco e cafezinho na intimidade de sua copa (era folga da empregada). Depois os cigarros fumados no sofá da grande sala. Entre quadros e objetos Ulisses presente. Enfim, a despedida. Clarice precisava trabalhar – encher o domingo. “Sábado é o esplendor, o domingo é oco”. Não voltei a ver Sonia ou Sheila.Em São Luís, de volta, os contatos com Dr. Domingos Vieira Filho, Presidente da Fundação Cultural do Maranhão e com o Secretário de Planejamento, Dr. Paulo Marchesini possibilitaram dizer a Clarice que São Luís a queria para uma conferência, contato com estudantes de literatura e conversa com os intelectuais e com quem se interessasse por ela. As providências foram tomadas e logo passagem aérea e estadia foram autorizadas.Voltei a ver Clarice em outubro, quando fui encontrá-la em seu apartamento. Eu com o coração aos pulos. Segunda-feira de manhã, 24 de outubro. Era um dia que Clarice não gostava, por causa da feira embaixo de seu prédio.Clarice me aguardava e mal eu entrei foi-me pedindo desculpas pela “desarrumação da casa” (a empregada não tinha ido). Muito papel amassado, cinzeiros cheios, jornais. Como se estivesse ali o retrato de seu domingo, (pois era o dia em que acordava mais cedo e trabalhava mais).Eu diante dela outra vez. Coração mais calmo. Já me acostumava àquela presença ansiada e temida. Queixei-me de não ter encontrado seu último livro A Hora da Estrela nas livrarias de Copacabana. Falei-lhe das críticas favoráveis e O Globo e Veja.Entusiasmada com a possível vinda a São Luís, Clarice contata com seu editor __ havia a chance de fazer o lançamento de A Hora da Estrela aqui.Ver São Luís, escrever sobre a cidade e o povo eram vontades suas. De alguma forma era a volta ao nordeste. De jóia rara chamou o poema de José Chagas (que eu tinha deixado na véspera). E por isso e pela minha Amarela Tessitura (poema) a pergunta direta e incisiva: “de que ou de quem vocês se escondem? Por que vocês tem medo de se mostrar?” não soube responder. Não sabia como. Tanta coisa dita e redita. E à confirmação de sua vinda a preocupação: “quem lê meus livros no Maranhão?”. E o compromisso de que eu seria sua cicerone (sem banquetes ou badalações). No meio disso A Hora da Estrela (o último exemplar que tinha em casa e A mulher que matou os peixes autografados com sua letra trêmula.Eu ali outra vez diante de Clarice ou ela diante de mim. Clarice que causa menos espanto com sua mão dilacerada pelo fogo do que pela anunciação de sua palavra. Clarice me despede no elevador do 7º andar e eu nunca mais a vi. No final do Leme as amendoeiras fazem sombra.

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