Seguidores

21 dezembro 2008

ALCAÇUZ PARA O ANJO

O anjo habita a vila de pedra
move-se com delicadeza
para não quebrar as asas
bebe goles de alcaçuz
e dorme
tem sonhos infantis
e dores humanas
olha os homens e as mulheres
com alegria de anjo
e sorri.





(Foto de menino sob chuva em SP, dez. 2008)

16 setembro 2008

FUGA

A notícia se espalhou pelas esquinas.
Sobre meu paradeiro, nenhum vestígio
homens e mulheres saíram à procura
do meu corpo enfraquecido

meu espírito sonâmbulo
é guia imaginário na rota do desespero

tenho feridas nos pés
e o coração tropeçado em si mesmo

se o corpo buscar o chão
(tapete de pedras pontiagudas
tal leito de faquir em seu martírio)
resistirei
alçada nas fímbrias do sonho que me alimenta
e protege
o sonho de encontrar um lugar onde ninguém possa chegar
o lago de águas luzidias e mornas
perto das montanhas

as mulheres e os homens desistirão da busca
quando perceberem que de mim só ficou o contorno iluminado
(bruxuleante ) a se extinguir pelos caminhos.

(AuGraca, jul. 22)

















FARELO DE LUZ

A noite pode ser mais que espera e sombra
se advinhamos a dança das estrelas
na fresta do olho

dançarinas da noite
ou lâminas do dia
unem ou retalham
o invisível

o universo é farelo de luz
se a mão é concha
para acolher o brilho.

(AuGraca, ago. 18)

RECLUSÃO














1
Meu tesouro
são as quatro paredes
e uma cadeira
o coração aquecido
e um lápis.

2
A palavra me guia
na direção oposta da rima
dizer é controverso.

3
Na falta de arroz e peixe
e azeite para o candeeiro
tateio o escuro e a fome
alguém me dará água
nesse gesto
luz.

(Au, 14 set. 2008)

20 julho 2008

PARTILHA

Em um lugar pequeno
guardaria se coubesse
a brisa
o milagre
e as palavras

em outro lugar menor ainda
esconderia o brilho dos olhos
farol ou lamparina

na caixa de marfim
libertaria o riso
nas mãos pequenas
sem maciez
o gesto inconsistente
diria adeus.


(Aurora da Graça, 2008)

15 julho 2008

(desenho de Fernando Chuí)
NÃO TER

Quisera não ter penas
meu riso se espalharia

quisera não ter pernas
usaria minhas asas

quisera não ter mãos
o poema se calaria

quisera não ter olhos
o escuro seria imagem

quisera não ter alma
seria irmã do robô

quisera não ter febre
fosse brasa camuflada

quisera não ser estilhaço
que a palavra fere e cala.

10 julho 2008

(gravura de Marcia Tiburi)
RASTRO DE LUZ

A rosa emerge solitária da sombra
vem coberta com véu de giz
sua máscara inventada
é caule e corpo do que afaga
e contradiz
alguma luz de rastro
exige permanência
adia o escuro.

26 maio 2008


Eram frestas
o que se podia ver
o que estava por dentro era adivinhado
como se imagina o dia que ainda vem.


(AuGraca, maio, 20)

SÃO VICENTE DE MINAS


DÍVIDA DE PÃO

A mulher veio primeiro
cabelos mais brancos que neve
pés expostos ao frio

o homem negro
sob chapéu de abas largas
cinza de cor seu paletó
pede poucos pães

o rapaz adentra
quer café quente e açúcar
cabelos negros de moldura
para sua face
bela

entram outras mulheres
com suas vestes rancheiras
aprumadas sob o frio de Minas
escolhem leite frio

sobre o balcão o caderno de notas
crediário
para os que alongam sua dívida de pão.

(AuGraca, SVMinas, maio, 25)

RIO DE JANEIRO


O SILÊNCIO DA CIDADE

O Corpo de Cristo (no calendário)

esvazia a cidade

andar por ela é olhar o tempo de um século que já não é
a cidade e seus portais de marfim e alabastro
pedras de cantaria

a cidade vive o tempo esgotado nas moradias antigas
pedra de lioz e calmaria
exulta o silêncio do vazio visível nos caminhos de sol e sombra
na paz quase absurda que a envolve

a cidade está livre entre o mar e a montanha

fulgurada nos vitrais de suas igrejas
permanece alheia aos apelos do mar que a banha
entrega-se aos passantes retalhados de desejos
vida simples e outra fome

a cidade se apodera da manhã
prescinde dos tempos vesperais e vive
como a eterna debutante da aurora
no silêncio que o Corpo de Cristo testemunha

nas casas descoradas muito antigas
o silêncio sustenta suas vigas
galpões devassados pelo pó serragem e o que restou
trastes imprestáveis portões sem tranca ruas em curvas
e ruínas do que antes foi palácio
casas que abrigaram os que chegaram com o Rei

a cidade sob sol e silêncio afastou o vozerio
para lembrar sua longa história de festas e reinados

nos tempos deste século sonha desmemoriada
em seus cômodos cedidos ao comércio de apetrechos

vagar

pela cidade envergonhada de seus crimes
compungida de suas perdas se desnuda
vigiada pelo Corpo de Cristo exibido no calendário.

(AuGraca, Rio de Janeiro, maio, 22)

07 março 2008

MARÇO!

SOL ANTECIPADO

Sobre as águas
um sol de maio antecipado
mergulha nas ondas (que a baía acolhe)
um faiscar quase inútil.
Ao largo e enfileirados
os navios
(habitantes costumeiros dessas águas)
mudam o leme
e não aportam na baía
navegam para a barra de outro porto
destino em cais reconstruído
na ponta da ilha.

RANHURAS DO AR

Na sala ampla
de poucos móveis
sou a mulher encostada no sofá

a que alonga seus braços sem tocar em nada
a mesma que se abstém de olhar as paredes
vê para dentro
pálpebras cerradas

punhos fechados no vazio
cavar nas ranhuras do ar
depois ...
aquietar-me
recolher-me
dormir
cercada das cores e desenhos
inquilinos das paredes.

LISTA DOS DESEJOS

Se a lista dos desejos perde a ordem
o fio de qualquer rotina nos salva
se encontramos a ponta.

A OUTRA COR

A cinza é o que pode vir
depois que o corpo amortalhado
perde a outra cor e o fogo rebelde
que a paixão exige
ilusão madrasta.


(Aurora da Graça, 2008)

02 março 2008

A frase de Walter Benjamin que eu conheço é “o tédio é a ave de sonho que choca os ovos da imaginação”. (MT)

17 fevereiro 2008

VORAGEM

De nada adiantará
conduzir meus passos para fora da voragem
mudar a direção
porque muitos são os destinados a atravessar o deserto
e eu
não tenho força nem determinação
posso sucumbir diante da ventania
não há controle
meus passos sulcam as areias e meus pés se afundam
a fuga de nada adiantará
a intenção escapa. Esbarro na luz obscena que o pecado oferece
é hora de saber os rumos da salvação.
(AuGraca, 2008)
ULTRA SONOGRAFIA

Na sala de exames
a mulher de branco me compara com a máquina
para dizer que a garganta é livre.


(AuGraca, 2008)
OUTRA PASSÁRGADA

Não desejo a Passárgada
que Manoel tanto proclama
eu só quero o clarão da lua
e a noite pela metade.

(AuGraca, 2008)

16 fevereiro 2008

DESALENTO

Vaguei ...Vaguei...
perdi a conta dos caminhos e das pontes
atravessei riachos
molhei-me em córregos
não vi peixes nem espelhos
venci as pedras e os escuros
a luz estava em outro lugar

meu olhar alcançou as encostas
escarpas verdes e vivas
e por lá nenhum traço que anunciasse
os rastros de tua presença

o tempo passou
caíram as folhas e a seiva, morta

mudou a paisagem
a procura inútil
o pensar perdeu-se nos versos
a palavra estandarte e guia
emudeceu

de real...a metamorfose
nós e nódoas nos pés
travas
desalinho
e um coração filtrado da amargura.

(AuGraca, 2008)

CHUVA! CHUVA!

(foto de Fernanda Guimarães Rosa)

VÉU LÍQUIDO

Noite úmida
véu líquido
penetras na minha nudez e revelas o que é frágil e sem beleza
olho em mim
decido cobrir o que melindras com tua réstia de gelo

procuro em qualquer mala alforje ou gaveta
o que possa vestir-me
não quero vestidos nem casacos
tampouco uniformes ou trajes extravagantes
sem apuro
o que eu quero mesmo eu sei
encontrar qualquer trapo
para cobrir a nudez inesperada
a nudez que se despetala no tempo
a nudez que acoberta o segredo dos desejos
a nudez insensata dos desvalidos

cobrir a nudez
protegê-la da névoa e do frescor dos ventos
recolher o corpo à calmaria dos panos

noite úmida
véu líquido
cobrir a pele e esconder a nudez no pensamento
não dizer nada
não ver a nudez
não tocá-la
deixá-la ao léu
isentá-la
ignorar que a nudez mostra o corpo e esconde as entranhas
oculta o que medra entre os ossos
move a lucidez do encontro e reduz a incerteza

cobrir a nudez
seus calores e suas ânsias
toldar-lhe o viço
fechar seus poros
abrandar-lhe a fúria

cobrir a nudez
espaço da pele onde a ternura pode fazer morada
moldura ou armadura a esquivar-me das flechas envenenadas
portadoras do que pode matar ou salvar.

(AuGraca, 2008)

MOTIVOS DAS TIAS MELANCÓLICAS















MELANCÓLICAS, AS TIAS

Para pouco servem as tias
os tios não
chegam sempre com alegria
e lançam seus galanteios
dão presentes
contam histórias
e bebem

as tias moram no tempo
seus desejos são poesia do que nem viveram
para alegrar o dia recorrem ao que lhes espia
se agacham na frente do baú de papéis
cartas antigas
cartões infantis
retratos frente ao espelho com o batom da mãe
fitas
convites de formatura
lembranças táteis pequenos objetos
roupinha da primeira caminhada
tudo o que as mães olvidaram
ou não lhes sobrou tempo para guardar
ou uma caixa um saco uma velha mala
falta sentimento nas mães? nada sei

as tias solfejam cantigas para filhos que não pariram
seus amores juvenis eram só literatura
não quiseram desdobrar-se
exibir o dna
falta de amor ou fuga para quem não precisasse compor-se

velhas tias arrematam o que sobra.

(AuGraca, jan. 2008
)