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11 julho 2011

CACO DE ESPELHO

 
08 julho 2011 by Mil Palavras













CACO DE ESPELHO,
por Aurora da Graça

p. 1
Uma porta e todas as janelas fechadas. Nada de vento. Alguma fresta de luz somente. Vontade de voar. Chegar onde te encontras e arrancar todas as agulhas que te rasgam as entranhas, arrancar de teus pulsos, as agulhas. Sarar as feridas que tua alma abriu em teu corpo e te obrigam a dormir de dor. Chegar onde te encontras e abrir teus olhos fartos de sonhar, livrá-los da vertigem, livrá-los do que te ofusca. Mais que aprisionado pelas paredes, mais que aprisionado entre as portas fechadas, eu mesmo me aprisiono no desejo, mesmo que passageiro, de abrir tuas veias com um sopro emprestado de Deus para que renasças e me digas que já é hora de mudar as rédeas da vida. Esvaziar mais e mais o oco. Tratar a vida com os brilhos que se convertem em rumos de sonhos.
p. 2
Longe de ti, rumino minha vida. O que me pega de surpresa e me assusta. Sempre compartilhei meu pensamento e minhas ações. Nada pedi em troca. A revelação estava por vir e eu não percebia o que estava atrás da máscara. Nunca sabemos o que a máscara esconde? Palavras afáveis, alegria aparente, gestos de carinho. A máscara arrancada mostra a face do horror e a impotência ao desempenho afetado dos personagens freia qualquer atitude. O cenário é novo e diferente. Nada se parece ao que me acostumei a ver e conviver. O teatro se manifestou. A representação do engodo. Resta fechar o pano de boca, vagar pela coxia. Não ver nem ouvir. O último ato chega ao fim. Não há palmas. A platéia se foi.
p. 3
Abre-se o dia toldado pelas nuvens pesadas de ontem. Impossível saber o que pesa mais. Se a agrura que as palavras absurdas provocam ou este céu carregado e escuro. Desvio meu pensar para longe do agora. Outro tempo de festiva contemplação. Quanto tinhas 20 anos e teus cabelos dourados brilhavam mais que ouro. Leves mais que plumas. Lisos mais que chuva pelos beirais. Outro tempo.
p. 4
Dormes, talvez. Reviro os escombros do que hoje se revela tênue e difuso. Cavo o que se viveu. Indelével. Revejo como se esculpisse na madeira mais dura com espícula do metal mais nobre. Vagarosamente. O desenho se revela na minha imaginação. Estampa-se a alegria e a representação da beleza. Revolver a memória de nossa vida feliz, no tempo das manhãs de sol e esperas sob a copa da amendoeira. Nossa felicidade era a de viver ao acaso das horas premiadas. Entre o mar e a ilusão. Tempo irreversível.
p. 5
Os acontecimentos do passado escapam da memória. Tomam corpo e desfilam na passarela desta recordação. Vejo-me desenhando teus trabalhos da Escola de Biologia. Glândulas, vasos e outros mecanismos do sistema imunológico. Tuas dúvidas sobre a existência de Deus. Tua descrença no pecado. Tuas descobertas do corpo. Prazer e ansiedade. Invenção quase infantil. Pela Biologia, perdeste o interesse. Outras indagações e novas perspectivas tomaram corpo. Descobriste talento em tuas mãos e com elas iniciaste a modelagem da argila. Seguiram-se outros materiais até chegares ao bronze. Belas esculturas. Tudo passou. Traçaste outro mapa para tua vida.
p. 6
Teu sonho estava apartado do meu embora tivéssemos compartilhado beleza e dissabores. A página está virada. Quando eu tive 39 anos foi o momento em que eu arriei a bagagem do desencanto e procurei outra linha para contornar a vida. Foi difícil abrir os umbrais da minha alma. Dobradiças enferrujadas, trinco sem utilidade. As brechas de sua urdidura eram invisíveis. Achei as ferramentas e enfrentei o oficio de redescobrir o brilho dos olhos e o ânimo de enxergar o que era real e me desvencilhar do sonho imaginário e impossível. Não é que eu tenha desistido do sonho.
p. 7
Reviver reinaugura a alegria? Revigora o ânimo? A alma se joga nas nuvens? Nas veias corre outro sangue? E para onde vão o desassossego e a melancolia? Em que vão do meu ser se esconderá tua imagem reinventada?
Página derradeira
Espanto-me e percebo que tudo não passou da invenção. Sonhei com “meus olhos costurados”, no dizer do jovem poeta. Estar só é chamar fantasmas, passado perdido. Preciso descansar o corpo. De olhos fechados por horas, muitas horas. O inesperado corte da luz elétrica escureceu mais o que em mim já era o breu. O corpo estirado na cama pressente o quanto teria que esperar pelo dia. Talvez uma espera inútil. Não há desenho para o que virá. O desconhecido tem a primazia e nos surpreende, sempre. A escuridão não permite que eu leia ou escreva. Pensar é possível, não fosse o desassossego que a quietude obrigatória instala em mim. A quietude silenciosa da madrugada, a ausência de apelos é palco perfeito ao surgimento de idéias, deslumbramento com a vida, sonhos. Nada acontece. O breu impede. Há o redemoinho na alma. Há certo desencanto. Não há desejo.
As imagens se sucedem no meu pensamento. Imagens retalhadas, confusas, quase obscuras. Movem-se. Torvelinho. Prenúncio de furacão. Meu espírito não suportará por muito tempo a movimentação pictórica de meus pensamentos, mas eu não ouso impedir. Permaneço estático à mercê do que poderá vir e que não sei nem posso imaginar.
Enganei-me. Tudo o que imaginei sobre esta nova vida para nós não passou de ilusão. Permaneces absorta e mais alheia ao que eu presumia ser normal e possível. Viver o dia e a noite enfrentando os acontecimentos com normalidade. Preciso entender o que meu pensamento fustiga. As lembranças, vivências e fantasias.
Há em mim o desejo de estimular os recônditos da memória, espaços construídos de silêncio. E depois? se eu tiver medo e não souber o que fazer com os segredos descobertos? pensamento, voz, esquecimento, lembrança ou nada.
Logo será dia. Abrirei a porta e as janelas. Escancaradas para o sol. Liberdade para a inundação da claridade. O vento, nos quintais, dará voltas nos lençóis dos varais. Diante da janela a paisagem. A paisagem não indaga, tampouco quer ouvir qualquer palavra ou história de amor ou ódio que eu possa ou queira relatar. Qualquer história de medo ou de aventura. Qualquer história de tédio ou benevolência.
Há um hiato entre nós. Eu também separado de mim.
Ser feliz, às vezes, é só lembrar.